Não tem palavras de introdução, prolegómenos, preparação. “Lisboa Domiciliária” entra diretamente no seu tema, rostos idosos, casas velhas, o coração da cidade (Bairro Alto, Mercês, por exemplo). Primeiro, até parece que a câmara está disfarçada, não interage com o que se passa (uma mulher que precisa de sair numa cadeira, descida à força de braços por uma escada por onde nunca mais poderá ir pelo seu pé; uma outra deitada, quase confinada ao leito, dando instruções a uma empregada, lá dentro). Depois, a câmara ‘falará’ com essas pessoas, sem que haja uma voz por detrás, deixando que elas contem — mágoas, memórias, desilusões, há quem invetive o mundo, há quem lamente a aridez da vida, há quem mostre fotografias, há quem desfile canções, há quem se lembre de quando era possível estacionar um automóvel lá em baixo, na rua, mesmo ao pé de casa.
“Lisboa Domiciliária” é um documentário amargo. A realidade que apresenta não tem saída, não tem remédio, não tem esperança. O presente é de sofrimento, o futuro é só mais sofrimento — ou o fim de tudo. Apesar disso, Marta Pessoa dota-se de um longo bafejo de misericórdia e persegue essa realidade com uma infinita disponibilidade, talvez quase ternura. Nunca olha mais do que deve, nunca recolhe mais que uma dignidade continuada e, deste ponto de vista, o filme é exemplar e devia ser visto e meditado pelos muitos que, em televisão, mostram a abjeção fácil, sempre que se abeiram dos grupos sociais na margem ou na fronteira da exclusão. Por isso, releve-se a postura de “Lisboa Domiciliária”: nunca se trata de ir espreitar, mas de conhecer — pessoas que, lisboetas, a cidade não mostra, antes cala, por detrás de paredes vetustas, como vetustas são as idades desses cidadãos. Uma Lisboa que nos faz estremecer e quase interroga o sentido da vida.
Jorge Leitão Ramos . Expresso
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